segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Cidade de Deus - Resenha de Filme sobre violência envolvendo negros

Colunas - Francisco Russo

A Arte Retrata a Vida

Cidade de Deus mescla entretenimento e realidade brasileira Começa Cidade de Deus. Logo de início o filme apresenta sons e imagens de uma faca sendo amolada. Em seguida surgem rápidas cenas que mostram um animado churrasco, com muita música, carne e alegria. Em um canto estão presas várias galinhas, que aos poucos vão sendo depenadas e mortas. Uma delas assiste a tudo com um olhar atônito. "Não quero morrer", deve pensar consigo mesma, "preciso sair daqui". A galinha consegue se soltar e foge, o mais rápido que pode, pelas estreitas ruas do local onde se encontra.

Este insólito início causa espanto a quem conhece ao menos um pouco da história de Cidade de Deus, filme dirigido por Fernando Meirelles que está em cartaz desde o dia 30 de agosto. Não seria este o filme a mostrar e debater a questão da violência nas favelas brasileiras, mais especificamente as do Rio de Janeiro? Mas esta surpresa não dura muito tempo. Em meio à tentativa de capturar novamente a galinha fugitiva alguém grita para atirar nela. É a deixa necessária para que lembremos novamente onde se passa a história: na favela carioca Cidade de Deus, em meio a uma verdadeira guerra entre traficantes e a polícia local.

Adaptado do livro homônimo de Paulo Lins, cujo roteiro foi escrito pelo estreante Bráulio Mantovani, Cidade de Deus tem por objetivo mostrar não apenas a história da favela que dá nome ao filme, mas também debater o porquê da escalada da violência no local. O filme possui uma clara divisão em três fases, todas interligadas através dos olhos de Buscapé, morador local que reluta em seguir a vida criminosa e serve como testemunha da história do bairro.
A primeira fase, no início dos anos 70, mostra o nascimento do bairro, que nem ao menos possui ruas asfaltadas e condições de vida satisfatórias oferecidas pelo Governo. Trata-se de uma fase romântica do local, onde os principais criminosos fazem pequenos assaltos, recebem ajuda dos moradores locais e onde, apesar das constantes rondas da polícia, pode-se jogar futebol tranqüilamente. É nesta época que, além de Buscapé, somos apresentados ao Trio Ternura, os "bandidos mais perigosos do Rio de Janeiro", e também a dois meninos que futuramente terão papel fundamental na trama: Bené e Dadinho.

As duas fases seguintes, ocorridas no fim dos anos 70 e início dos 80, mostram justamente o fim desta fase romântica e o início do desenvolvimento do tráfico local. É quando surge Zé Pequeno, que rapidamente assume o controle de praticamente toda a Cidade de Deus. Instável e cada vez mais violento e psicótico, Zé Pequeno constantemente entra em conflito com Cenoura, com quem divide o controle da favela. O confronto entre ambos é inevitável e o público percebe isso logo em seu primeiro encontro. Quando ele enfim acontece a guerra é então deflagrada.

Além do próprio desenrolar da história, as três fases do filme são diferenciadas pelo ritmo dado por Fernando Meirelles à fotografia. Na 1ª fase, por exemplo, as cenas são melhor enquadradas e mais "conservadoras", mudando para um estilo cada vez mais ágil e solto à medida que o caos toma conta da história. Na 3ª fase do filme praticamente todas as cenas foram rodadas com a câmera na mão dos cinegrafistas, com cenas tremidas e tensas de quem está realmente em meio ao fogo cruzado. Além disso Meirelles não poupa o espectador de cenas chocantes e muitas vezes extremamente violentas, numa tentativa de realmente mostrar a realidade do tráfico nas favelas, mesclando tais seqüências com outras em que utiliza a fina ironia do humor negro, tão conhecida dos fãs de Quentin Tarantino.

Entretanto, todo o estilo visual implantado por Meirelles em Cidade de Deus de pouco adiantaria se o filme não recebesse uma valiosa contribuição: a atuação do elenco. Formado principalmente por atores até então amadores, trabalhados pela co-diretora Kátia Lund e selecionados nas próprias favelas cariocas, o elenco surpreende pela excelente atuação de alguns de seus integrantes. O jovem Douglas Silva (Dadinho) espanta com a naturalidade com a qual faz rir e logo em seguida nos aterroriza, repetindo seu belo desempenho mostrado no curta Palace II, também de Fernando Meirelles. Leandro Firmino da Rocha (Zé Pequeno) consegue encarnar brilhantemente seu personagem, demonstrando suas facetas de amigo de Bené, líder, assassino psicótico e também seu lado cômico, sempre permeado de humor negro. Outros destaques do elenco são Alexandre Rodrigues (Buscapé) e Phellipe Haagensen (Bené), que protagonizam algumas das cenas mais memoráveis de Cidade de Deus. E, em meio a tantas grandes atuações, fica em 2º plano justamente aquele que vem sendo considerado como um dos melhores atores brasileiros da nova safra: Matheus Nachtergaele, que vive o traficante Cenoura.

Mas nem tudo são flores para Cidade de Deus. Consagrado no Festival de Cannes, com elogios em vários dos principais jornais sobre cinema dos Estados Unidos e da Europa e já cotado para o próximo Oscar de melhor filme estrangeiro, o filme ainda causa controvérsias no Brasil. Os críticos pregam que há uma banalização desnecessária da violência, trazida às telas numa linguagem pop, próxima à do videoclipe, justamente para atrair grandes públicos e servir como mero entretenimento. Já seus defensores exaltam Cidade de Deus como um filme que não apenas apresenta o mundo real e até então pouco conhecido do tráfico em uma favela, como também levanta discussões sobre o que pode ser feito para evitar que aquele mundo continue existindo.

A verdade é que Cidade de Deus é um filme que incomoda, pelo fato de grande parte do mostrado em cena ser real e estar ocorrendo próximo de nós, aqui mesmo no Brasil. A utilização de recursos visuais por parte do diretor Fernando Meirelles realmente serve para dar um tom mais ágil, que acaba atraindo o público que é fã do cinema norte-americano de ação, mas isto não é motivo para recriminações. O simples fato deste mesmo público ir ao cinema para assistir a um drama que fala sobre a violência no Brasil, quebrando o preconceito ainda existente contra filmes nacionais, já é algo a ser comemorado. Se além disto este mesmo drama, além de servir como entretenimento, consegue passar uma mensagem social e levantar discussões acaloradas, como é o caso de Cidade de Deus, trata-se de um filme que merece ser comemorado e nomeado como um dos principais longa-metragens da atual fase do cinema brasileiro.

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